sexta-feira, 5 de junho de 2009

um rei, e não sabia do Cristo!

Não havia lugar pra sentar, mas me acomodo bem no fundo do ônibus, encostado no apoio da descida da porta. Dali sou parte da equipe, os olhos do motorista pra situações ocultas ao limitado espelho. Gosto disso. Lavo o rosto com o vento da janela aberta e vou cedendo lugares vagos aos passageiros, até que sobre mais de um. Aí sento e viro passageiro.

Dessa vez, uma ladainha foi tomando corpo na cadeira atrás da minha. A princípio como um velho reclamando da vida. Calor, violência, desrespeito dos mais jovens? não fazia idéia da pauta do caboclo cansado, voz de fumo mascado. Mas na medida da fala a indignação superava a timidez e fui obrigado a olhar, oferecer ajuda.

O homem falava sozinho e questionava qualquer olhar ao alcance do seu. Fui pego no exato instante do olhar, quando desvendei o alvo de sua fúria: Herodes. “Imaginem: um rei, e não sabia do Cristo! Não sabia do Cristo! E era um rei, pode imaginar? Um rei que não saiba do Cristo...”. Capturado pela surrealidade, conheci o vazio da mente, flagrei minha completa ignorância.

De posse da minha consciência o velho profeta se houve compadecido da penúria de saber, da alienação. Balbuciei um “pois é, absurdo, né?”, enquanto tentava restabelecer as faculdades mentais. Antes disso virei pra frente e devo ter mexido também com o velho – pois baixou um pouco o volume da lamúria.

Na parada seguinte, a porta de saída se abriu e entrou um senhor, paletó bege ou branco encardido, bíblia esgarçada na mão. Ocupou meu tradicional posto abaixo do espelho. O caboclo atrás de mim anunciou: “chegou outro”. Não entendi até ter início mais um sermão.

O novo orador trazia a verdade no peito. “A maior virtude do cristão é a obediência!”, sapecou já na abertura, pra toda a platéia. E seguiu matraqueando de modo a constranger todo o obediente ônibus. Também constrangido, o próprio pastor buscava na bíblia a legitimidade. “Tem gente que não gosta de ouvir a palavra, mas a palavra existe pra ser pronunciada. Bem aventurados os que ouvem a palavra de Deus! A verdade vos te libertará!(sic)”.

A popularidade despencava parada a parada, e ele reafirmava a importância de pronunciar a palavra. “Jesus está breve a voltar! A palavra precisa ser pronunciada”. Em meio a sermões confusos e vazios, falou de amor. Deve ter sentido algum retorno, pois desembestou amor até o fim. “Deus é amor! A palavra de Deus é amor! O amor precisa ser pronunciado!”.

Bastante educados, os passageiros do Linha do Tiro. Se ninguém sequer olhava diretamente pro pastor, ao menos não escutei vaia. Era um silêncio respeitoso, interrompido pelas pequenas participações do meu vizinho de trás - “aleluia!”. Por fim, uma compilação musicada da palavra “glória”, cantada em dueto, seguida por frases guturais de um aramaico típico da Bomba do Hemetério ou do Caminho das Índias.

Acabou o sermão. Dois segundos de silêncio e o de trás resmunga: “digam amém, pelo menos, abençoados...”. A maioria dos olhares passageiros sintetizava solidariedade entre sufocados e respeitosos pela religião, ou por Deus. Alguns quase cochichavam “aleluia”, respondendo ao reclame. Pelo menos quatro pares de olhos acusaram o pastor ali de pilantra em treinamento de retórica, humildade pra fins comerciais ou trabalho de base ideológico. Fato é o avanço da guerrilha cristã fundamentalista e obtusa - a passos largos entre os mais espoliados, historicamente.

2 comentários:

  1. esses pastores de ônibus tão roubando o emprego dos cantores mirins "eu não roubo, eu não cheiron cola, eu não sou disso não".

    eu preferia os pirráias.

    massa o teu blog

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  2. Pacientes os passageiros do Linha do Tiro!!!!

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